Imaginários – Volume I

Primeiro projeto em papel da Editora Draco, a Coleção Imaginários — cujos primeiros volumes foram organizados por Eric Novello, Saint-Claire Stockler e Tibor Moricz — reúne em cada edição uma seleta de escritores com histórias ambientadas nos mais variados subgêneros da ficção fantástica. Concebida originalmente com o nome de “Projeto 22”, e cuja reorganização dos contos deu origem aos livros um e dois da série, a Imaginários [que a partir da 3ª edição passou a ter o editor Erick Santos como responsável] já nasceu ousada e, além de trazer uma amostra da fina flor dos fantásticos destas terras brasilis, o volume dois tem a missão de unir as literaturas de ambos os lados do Atlântico, apresentando contos de autores portugueses que também navegam por águas fantásticas. Neste primeiro número, os escritores Gérson Lodi-Ribeiro, Giulia Moon, Jorge Luiz Calife, Ana Lúcia Merege, Carlos Orsi, Flávio Medeiros, Roberto de Sousa Causo, Osíris Reis, Martha Argel, Davi M. Morales e Richard Diegues se revezam em histórias que vão da ficção científica à fantasia, do humor sutil ao mais profundo inconsciente humano, abrindo de forma bastante positiva a coleção que já conta com quatro volumes lançados e se prepara para apresentar o quinto.

Vinícius de Moraes, conhecidíssimo, escreveu certa vez que o amor, mesmo não sendo imortal, deve ser infinito enquanto dure. À nossa revelia, os sentimentos são transitórios e, cientes disso, até que ponto devemos interferir em seu curso a fim de torná-lo eterno? O conto Coleira do Amor, de Gérson Lodi-Ribeiro, une em uma mesma história dois aspectos bastante distintos, porém, convergentes: a busca pela eternização do amor e as consequências que se originam a partir desse ato. Ambientado em uma Rio futurista e utópica, onde as casas são inteligentes e as favelas deram lugar a morros verdejantes — resultado do grande êxodo urbano que fez com que a maioria das pessoas deixasse a Terra para viver em colônias nas órbitas baixas —, a trama narra a perda de um ente querido e o consequente sofrimento que isso acarreta, sofrimento este que, no conto, alcança proporções catastróficas graças a um eficiente implante artificial não por acaso denominado eterno amor. A história, essencialmente emotiva, se utiliza da tecnologia e do futurismo como pano de fundo de forma mais que oportuna para criar uma linha tênue entre amor e morte que acaba dando um gostinho especial à coisa toda. E não fosse a incidência do aparato tecnológico que perpassa o conto com a mais absoluta naturalidade e a capacidade narrativa do autor, evidenciando sua gênese sci-fi, esta até poderia ser uma história trágica tanto possível de ser ambientada nas ágoras gregas, quanto nos modernos romances “água com açúcar” que infestam as prateleiras das livrarias.

Com a onda de magia e bruxaria surgida na esteira de Harry Potter em alta, quem já não se imaginou querendo uma varinha mágica para realizar feitiços os mais diversos, ou se tornar conhecedor de poções milagrosas, eficientes e instantâneas? Pois, Giulia Moon conseguiu esse feito. No divertido Eu, a sogra, vemos uma senhora, que é ao mesmo tempo a tríade bruxa, mãe e sogra, às voltas com o retorno do filho após uma longa temporada no Japão e com uma nora indesejada que ele traz a tiracolo, às vésperas da realização de um feitiço tão importante que só pode ser feito a cada três décadas. A tal nora, irritantemente prestativa, torna-se um ingrediente difícil de encaixar no preparo da poção e, para não fugir à regra, ela acaba botando a mão onde não deve e põe tudo literalmente a perder. Com feitiço — e a possível reconciliação com a prima, a grande beneficiária do tal sortilégio que periga se tornar sua inimiga número um — indo pro beleléu, resta à sogra apenas esperar pelo fim da noite e pelo inevitável. Mas, minutos antes do desespero final, eis que surge a melhor parte do conto. Se você é daqueles que ainda tem dúvidas de que nossos japoneses são melhores do que os dos outros, espere até ver do que essa japonesinha high tech é capaz de fazer com um saco de feitiços e um micro-ondas.

Jorge Luiz Calife traz um conto inocente sobre contato imediato. No deserto do Majave, mãe e filha se veem às voltas com a queda de um objeto desconhecido nas proximidades da casa de verão onde estão hospedadas. Preocupadas com a ausência do marido/pai que tarda em chegar, ambas decidem encontrá-lo no caminho e, de quebra, matar a curiosidade dando uma espiadela no tal objeto. Ao chegarem ao local, elas encontram uma espécie de nave esférica caída à margem da estrada, e o pior: descobrem que o caminho foi broqueado pela destruição provocada pela queda do objeto. Proposital ou não há, aqui, uma tentativa insipiente de suspense, felizmente deixada de lado pelo retorno das duas à casa. Ao chegarem, outra surpresa as aguarda. Uma entidade, com jeito e forma do marido/pai desaparecido, está esperando por elas, confortavelmente sentado no sofá da sala. Descoberto pela mulher, ele explica que seu verdadeiro marido está reparando sua nave e que, por isso, ela precisa ser paciente. O conto mantém esse tom inocente praticamente o tempo todo, remetendo a insólita situação mais à visão da filha do que da mãe. Um fato que achei particularmente interessante é o motivo da visita dos aliens à Terra: eles buscam a simetria das formas, a perfeição da beleza existente em nosso mundo que, por estarmos cotidianamente tão próximos, sequer percebemos. Um conto despretensioso, talvez o mais despretensioso do livro.

Ambientado no mesmo universo de seu romance de estreia, o conto de Ana Lúcia Merege apresenta uma história de superação e escolhas. Em visita a uma possível nova fonte mágica, que supostamente teria o poder de transformar em supercavalos as montarias do exército real — tal e qual já havia sido feito com as águias a partir do poder de outra fonte — o mago Mael, chamado de O Senhor das Águias, se depara com um jovem rebelde, vítima constante da brutalidade e ignorância do pai, como poderes mágicos latentes. Tomando-o como guia no caminho, ele descobre que o jovem já fez uso das águas das fontes e que, de certa forma, já tem algum domínio sobre magia, mesmo que inconscientemente. Mael, então, fica tentado a lhe dar uma chance, uma oportunidade. No entanto, antes de tomá-lo como aprendiz, ele terá de deixar o jovem escolher por si mesmo que caminho seguir, o da difícil superação da raiva e do medo ou o da vingança fácil. Conto que planta mais uma sementinha neste universo fantástico, A Encruzilhada talvez peque exatamente por isso. Na ânsia de fazer parte de um universo maior, a história se torna aberta, inconclusiva. O conto também apresenta personagens típicas da alta fantasia, o pai rude, a mãe submissa, a filha calada e o jovem rebelde, constantemente castigado por sua conduta e que, um dia, vê diante de si a chance de mudar o estado das coisas. No final, a história torna-se uma boa porta de entrada para se conhecer este mundo que continua no livro O Castelo das Águias, também com o selo da Draco.

Por toda a Eternidade, de Carlos Orsi, traz um recorte rápido e preciso do dualismo interesse X amor, tema tão em voga na história humana. Otelo, um cientista espacial, torna-se afamado ao construir uma nave capaz de se aproximar de buracos negros. Pelo feito, a nave alcança um valor estratosférico (à falta de um termo mais universalizante e condizente com o conto), e passa a ser objeto de desejo de uma raça alienígena interessada neste tipo de exploração. Porém, para desespero de sua esposa ele se recusa a vendê-la, como se ao fazê-lo, estivesse se desfazendo de seu prestígio. E como para todo entusiasta há sempre um oportunista, um amigo resolve dar cabo dele, vender a nave por um precinho bom e, de quebra, ainda ficar com a viúva. Ou seja, a mesma velha história conhecida desde os tempos daquele famoso escritor inglês, acrescida aqui de algumas muitas parafernálias tecnológicas e uma tácita raça alien que leva a sério, mas muito a sério mesmo, o tal do “até que a morte os separe”. E como ainda há certa justiça poética neste universo de dissabores, a morte de Otelo e o final tão bem planejado pelo amante e a futura viúva sofre uma reviravolta inesperada, culpa de um autêntico registro que ficará literalmente gravado para toda a eternidade.

Flávio Medeiros traz mais um conto com alienígenas, porém com uma premissa, no mínimo, interessante: sempre, mas sempre mesmo, desconfie de indivíduos bem intencionados. A história segue duas linhas distintas, que se convergem mais para o final. Tony, um solteirão amargurado, acaba encontrando um “eco de sua juventude” na voz de uma crooner que se apresenta em um bar onde ele resolve tomar uns tragos; conhece-a mais para o final da noite (usando a velha tática “pede uma cerveja, faz amizade com o garçom e pergunta da garota”) e, conversa vai, conversa vem, elogio aqui, cantada bem dada ali, que, aliás, muito marmanjo já usou ao menos umas vinte vezes na vida, ele acaba se envolvendo com a tal moça. Enquanto o negócio todo começa a se desenrolar, vemos surgir uma “história por detrás da história”. Via pensamentos do Tony, ficamos sabendo da chegada de uma raça alienígena que literalmente desceu do céu com a promessa se salvação do mundo. O motivo para precisarmos disso? Ora, o de sempre. Fechamos os olhos pra tudo e mandamos ver na destruição do planeta. Nada muito diferente do que estamos fazendo hoje. Quando tudo parecia perdido, os tais aliens surgem com a promessa de salvação, plenamente aceita, diga-se de passagem, ainda mais depois que se sabe o valor de tão desprendida ação: eles nada mais querem do que [nos] observar, pura e simplesmente. Tecnologia avançadíssima em troca de bisbilhotice sem nenhum tipo de interferência, apenas análise comportamental. E os humanos o que fazem? O que sabem fazer de melhor: tentam explorar os aliens e tirar proveito da situação. Bateu uma sensação de “já vi isso em algum lugar?” Pois é.

Mas enquanto o mundo festeja uma nova era de esperança proporcionada pela chegada dos visitantes, Tony sofre uma perda que o torna extremamente rancoroso: sabe o negócio de observação não-interferencial requerido pelos aliens? Isso pode ser mais grave do que imaginamos. No final, como amarração, temos duas grandes revelações: a primeira para o próprio Tony e a segunda, para o leitor. Ambas bruscas, mostrando que, muitas vezes, nem tudo o que parece realmente é.

Enfrentar nosso demônio interior com o pouco de anjo que ainda nos resta. É disso que trata Um toque do real: óleo sobre tela, de Roberto de Sousa Causo. Um pintor surrealista vê-se subitamente imerso dentro de sua própria arte, um delírio de formas e movimento composto por aquarelas e rostos desconhecidos, não-rostos na verdade, pintados a óleo. Neste universo onírico em que tudo é cor e forma e movimentos pincelados, algo se destaca: uma quebra na simetria das cores, um sentimento distinto, amor. Quando todas as formas são irreais e os rostos já não sorriem pela simples falta de significados, o que resta a ele é perseguir aquilo que ainda o torna humano, que o difere do todo aquarelado que o cerca. E, ao perseguir esse amor que traz seu mundo de volta à forma verdadeira, ele também terá de se confrontar com seu monstro interior, que deforma sua vontade. O conto, um dos melhores do livro, transporta para a esfera do onírico a luta diária que todos nós travamos entre os lados bom e mal que nos faz completos. E, no final, vencido o monstro, resta a consciência do vazio, o descanso pleno, reparador.

Desabafo! Se tivesse que resumir em uma palavra o conto Contingência, ou Tô pouco ligando, de Martha Argel, a escolhida seria esta. Durante a narrativa de uma série de fatos fortuitos que se desdobram em outros, que se desdobram em outros e outros, a autora vai tecendo uma crítica mordaz a um sem número de pequenos grandes problemas que parecem afligir a todos, em maior ou menos escala, saibamos deles ou não. Essa tessitura crítica se estende desde o profissional de superfície, “produto típico da academia tupiniquim”, à degradação de áreas naturais resultante da ação — ou seria inação?! — deste profissional, coisa que não valoramos e que, muitas vezes, sequer tomamos conhecimento. Através de outra série de pequenas alterações na história original, graças às chamadas contingências, surgem variantes que tentam explicar en passant a tão falada seleção natural, a interferência do homem no curso evolutivo e as consequências de tais atos numa escala mais ampla. O conto é permeado por uma aura de forte impotência, cujo fino revestimento de indiferença aparece a todo instante, através da voz/pensamento do narrador, em frases como “isso não é problema meu”. O mais interessante é que, no final, fica a impressão de que o desabafo — e o dualismo vontade/impotência de fazer algo sobre — é de todos nós.

Numa construção antiga, recentemente transformada numa espécie de centro esportivo escolar, dois jovens encontram uma estranha sala, enquanto procuravam pelo vestuário. Ao entrarem no local, eles se deparam com uma grade posta sobre um enorme buraco e uma corda, também de proporção incomum, aparentemente suspensa no ar. Enquanto explora o ambiente, um dos jovens é atingido por algo que lembra vagamente uma bolha de água, algo cuja tensão superficial (igual àquela que se forma num copo com água, pouco antes de transbordar) o mantém estranhamente unido. Do nada, dezenas de bólidos despencam das alturas invisíveis, atingindo-os. Um dos amigos desaparece no meio da chuva inesperada e quando o outro, que havia saído para buscar ajuda, retorna à câmara, encontra apenas uma parede no lugar da porta. No weird room, no friend. E é isso! Confesso que demorei a entender o que se passava; aliás, uma leitura apenas não revela de imediato do que trata a história, falta-lhe a explicação das entrelinhas.

Fechando a série de contos do primeiro volume, Richard Diegues traz uma história sobre invasão, profecias e o apocalipse bíblico, tudo isso visto sob o ponto de vista do invasor. A Terra, devidamente invadida e expurgada, passa por uma faxina geral para se livrar da presença dos humanos que se amontoam aos milhões nas ruas das grandes e pequenas cidades do mundo. Numa dessas diligências sanitárias, os aliens encontram o corpo de uma freira com mais de 1000 anos de idade, totalmente intacto. A partir daí, começa uma investigação minuciosa para se tentar identificar os porquês disso, até que pesquisadores se deparam com uma antiga relíquia que fala sobre o apocalipse. Crença em deuses únicos, daqui e de além, milagres, a bíblia e um historiador alienígena se sucedem em uma história que narra o fim dos tempos — já que a raça humana foi pro beleléu — de uma maneira bem peculiar. O conto segue muito bem, obrigado!, até a penúltima página, e se tivesse acabado aí, ficaria ótimo. O problema é que a história, como o mundo, não acaba e, no final, vemos surgir um Deus preguiçoso que, não tendo feito nada para salvar os homens, resolve recriar a coisa toda do zero. Não que Ele não possa ter se cansado de brincar de ventríloquo e, a propósito da invasão oportuna, ter se livrado de vez do problema. Mas, nas poucas linhas que antecedem o ponto final, há um humor sutil, um tantinho desproposital, que não casa com o resto do conto, deixando a impressão de que tudo teria ficado melhor se Ele tivesse continuado dormindo.

No geral, o volume I da Imaginários, apadrinhado por um belíssimo desenho do Roko, forma uma teia diversa e instigante, garantindo bons minutos de leitura e atiçando o desejo de conhecer o resto da coleção.

Rober Pinheiro

Rober Pinheiro é publicitário e tradutor. Autor do romance Lordes de Thargor, possui um blog dedicado a este universo fantástico e outro, onde escreve de tudo um pouco. É coautor de diversas coletâneas e organizador dos projetos A Fantástica Literatura Queer e Fragmentos do Inferno.