Jogo da Memória: Souvenir iraquiano
por Eduardo Santos em maio 5, 2008Um Comentário Publicado em Cultura Nerd, Livros

Comentários sobre o romance de espionagem Souvenir iraquiano de Robinson dos Santos
A memória coa o passado formando aquilo que nem sempre escolhemos ter sido, vivido e acontecido. E esta entidade assim informe vai captando interferências de luzes, sons, sabores, texturas e cheiros que assaltam nossa máquina orgânica no presente empírico. É possível estabelecer até vínculos causais entre fenômeno percebido (aquele que conseguiu perfurar camadas protetoras construídas quem sabe com que moral, trauma ou desejo) ou fato posto e heranças genético-culturais para, quem sabe, nos dizer que aquela população não lê romances de cavalaria por não haver raízes históricas e assim compilar centenas de raciocínios que são vários coerentes, poucos belos, raros brilhantes e muitos óbvios. Pura tautologia. Mas é fato que para ver o sol é preciso olhos d’alguma espécie qualquer. E ainda assim, há olhos para os quais sol é Deus. E, claro, há quem sinta muito calor mas não consiga dobrar o pescoço.
É, então, sempre preciso fletir pescoços, construir cenários objetivos, elaborar mesmo que intuitivamente conceitos para ouvir a dissonância daquele quarteto de cordas. Querer não é necessário e muito menos suficiente do que poder para observar a experiência empírica. Há um desaguar, um epílogo de toda a história que já aconteceu em todas as dimensões de passados. Há esta “pré-acontecência” que ultima em me reconstruir a flor quando olho para sua pétala e me comove a curva generosa e sensual que faz para me mostrar seus pistilos amarelos.
E mesmo passado posto e disposto há ainda quem espirre pelo pólen aspirado. Mas o próprio pensar em um futuro é fenômeno do espirro posto; da conseqüência de tudo que cá pude juntar. Juntamos lembranças para construir no presente uma perspectiva qualquer de futuro.
Sabemos e esforçamo-nos cotidianamente em esquecer que não dominamos o jogo. Que os souvenires que com muito esforço recolhemos, classificamos e guardamos não são o bastante para quem sabe mesmo, sequer influir, no futuro que desejamos ter. E quando a posteriori contemplamos o futuro já passado, quando nos orgulhamos por ter feito vínculo entre conseqüência e causa, estamos é professando fé para quem sabe encontrar motivo e recolher mais uma lembrança a fazer de futuro projetado.
Viajamos para recolher lembranças. Não compro souvenires de plástico injetado naquelas barracas populares que trazem d’algum lugar remoto da Ásia um simulacro da torre. Não compro porque as acho um horror. Não compro porque a tinta branca que escorreu pelos olhos do boneco e lhe desce pelas pálpebras me lembra, antes, do pouco dinheiro que obteve algum operário faminto que da consubstanciação metafísica que uniu artista e singular momento transformando objetivo e subjetivo em algo indefinível que chamo arte.
Mas recolho sim minhas lembranças. E trago na bagagem, como concessão ao existir, aquela caneca para uma tia que ficará autenticamente emocionada. Já trouxe mesmo canecas para mim. E é fácil trazê-las! Canecas são ótimas para se beber café ou leite. As gentes, afinal, recolhem não os souvenires que querem mas, principalmente, os que podem. E é assim “uma lembrancinha” que dá título ao romance de Robinson dos Santos. Um souvenir de mais de um milênio.
Li “Souvenir iraquiano” em quatro dias contados. É daqueles livros que não se consegue largar uma vez iniciada a leitura. Se você sai para a praia e esquece de levá-lo, não precisa nem terminar sua leitura: o livro não funcionou. Lembro que nem o abri nas areias do Leme. Era, afinal, uma praia com família e havia boa prosa para embalar o olhar atento às crianças a brincar na espuma de ondas. Mas não pude deixá-lo em casa e mesmo a prosa fácil de sábado acabou indo de alguma maneira parar em comentários sobre o texto. E a primeira observação é de que o livro ‘funciona’ de acordo com sua proposta inicial. Praia encerrada, banho tomado retomei apressado o livro.
O romance de espionagem com texto ágil, cortes rápidos e precisos não faz parte de minha dieta cotidiana. Falta-me, portanto, referencial para análises comparativas ou sutilezas de influências entre outras. Mas é exatamente a causa dessa falta de bagagem que torna interessante a visita ao texto do brasileiro. Porque a memória lembra é de traduções brancas feitas com textos lisos como matéria prima. Lembra também (ainda que mais apagada ainda) dos que escaparam da pasteurização habitual que domina este segmento do mercado editorial para apresentar uma prosa que desencoraja o término da leitura. As academias têm lá suas motivações para tratarem o mercado como um menino tolo e inexperiente. Mas o texto em questão não é uma tradução e só isto já o coloca em uma divisão especial.
Até mesmo pelo tom da narrativa o leitor é convidado o tempo todo a estabelecer a contrapartida de um plano visual para o texto. Esse plano visual se desenvolve intuitivamente como um filme, inevitável nestes tempos de cinema-experiência nos quais uma respirada mais forte do espectador vale mais do que cem linhas de diálogo. E quando a gente “vê” Souvenir saindo do texto para virar referência visual ainda que imaginária, dificilmente o discurso seria de um diretor brasileiro. Assim como quase não publicamos, os brasileiros não filmamos este tipo de ficção. Mas o apelo cinematográfico de “Souvenir iraquiano” é tão forte que fiquei imaginando qual brasileiro teria mãos talentosas para dirigir uma adaptação para o cinema. Lembrei de Beto Brant que fez os ótimos “Os matadores” (1997), “Ação entre amigos”.(1998) e, mais conhecido, “O invasor” (2002). Beto tem outros dois filmes listados no IMDB que ainda não vi, “Crime delicado” (2005) e “Cão sem dono” (2007). Vou dar um confere.
Nosso mercado editorial não produz localmente o tipo de literatura que temos em “Souvenir iraquiano”. É um texto que exige considerável esforço de planejamento e pesquisa. E é uma arquitetura de texto que demanda precisão em seus tempos e cortes para estabelecer um ritmo que seja realmente fluente para o leitor. O livro de Robinson consegue tudo isso e, como brinde, oferece um texto que cria uma linha de tensão, de desconforto que acompanha a narrativa desde o início. Robinson utiliza “frases B” para compor sua prosa, ou seja, o discurso não “escorre” do jeito como se espera. Não é texto óbvio, apesar da vivência no jornalismo do autor dar o tempo todo o necessário grau agilidade que um livro de ação como este precisa.
Me é inteiramente compreensível que o mercado editorial promova cá os mesmos grandes nomes de novelas de ação que têm aceitação em outros lugares do planeta. A demografia para o produto já está, afinal, traçada. E com ela as peças de marketing, a cor das capas, os pontos ideais de venda e todos os atributos não literários que fazem essa indústria ser chamada mercado editorial. É curioso como em um largo segmento deste mercado existam poucos autores como Robinson em nosso país.
Não tenho dúvidas das relevantes dificuldades para urdir tramas, montar equipes de pesquisa histórica e cultural, ultimar enfim todas as ações necessárias para a criação de textos de ação ágeis como este. Mas parece que o que há de menos em nosso país seja a competência de marketing para criar “produtos editoriais” em um combalido mercado onde amplo percentual do público alvo quer mesmo é comentar ter lido o último Tom Clancy.
Mas este mercado é amplo e global. Se você gosta do gênero e não leu “Souvenir iraquiano” não sabe o que está perdendo. Se ler, vai querer como eu reler para memorizar os vários easter eggs distribuídos pelo texto que contam desde características construtivas de um tanque até hábitos culturais de fronteira. Não importa exatamente se aconteceu assim. Robinson nos faz crer que poderia ter acontecido assim. E usa para isso, além de um talento específico, muita informação contextual.
A trama se desenvolve como uma inevitável conseqüência do prólogo que, apesar de ocorrer bem antes do enredo principal, apresenta à força bruta e em reduzido número de páginas dois dos principais personagens do romance. Ficamos sabendo que aqueles acontecimentos ficarão marcados na memória dos personagens porque não saem mais de nossa mente. A lembrança é a matéria prima com que todo o texto trabalha. Souvenir é construído em torno de uma “economia de memórias”. Memória é a quimera que persegue o pai que deixa a filha doente, que consome o ex-engenheiro bem-sucedido, que move o herói de uma outra guerra. É a lembrança que faz o agente da CIA se mover e a bela traficante de relíquias matar. E é também com uma recordação que o livro termina: com o retorno de algo que já havia sido esquecido pelo personagem e pelo leitor.
O livro: Souvenir iraquiano
Onde comprar: Livraria do Crime