Sobre Direitos Civis, vida-imita-a-arte e HQs
por Rober Pinheiro em junho 1, 2012Zero Comentários =( Publicado em Quadrinhos
Apesar de ser considerada como a Nona Arte, as histórias em quadrinhos sempre foram vistas pelos doutos da cultura estabelecida como uma espécie de não-arte ou, mais precisamente, uma arte-outra, embalada e vendida apenas como um produto para entretenimento, puro e simples. Para os puristas, não há literatura desenhada, prosa questionadora ou temática pertinente vindas da técnica de quadro a quadro que agregue algum valor digno de menção ou nota. A despeito de nomes do porte de Burne Hogarth, Moebius e Robert E. Howard, Will Eisner e Jorh Byrne, Laerte e Ziraldo [representantes brasileiríssimos da arte ilustrada, com suas ácidas tirinhas de cunho sócio-político-cultural], Hergé, Stan Lee e tantos outros, apenas pra ficarmos nos ocidentais, as HQs sempre caminharam à margem da arte instituída, o que, de certo modo, é até bom. Em outras palavras, quadrinhos são para ver, não para fazer pensar.
Um erro bastante comum, especialmente quando se foca a questão da problemática social que, a despeito de sua vocação representativa, é deve da arte apontar.
Críticas sociais e de comportamento sempre tiveram papel importante, quer mais explícito ou mais disfarçado, nas HQs, e sua influência chegou ao ponto de gerar respostas como o tratado Seduction of the Innocent [Sedução dos Inocentes], do alemão Fredric Wertham, que causou estardalhaço ao afirmar categoricamente que as HQs “eram uma forma ruim de literatura popular e um sério fator da delinquência juvenil”. Banalizações do crime / horror, do comportamento sexual e de pensamento foram apontadas, e sobrou até para o Batman [com a sua velha dúvida homoafetiva], Mulher-maravilha e sua veia lésbica e Super-Homem, chamado, entre outras coisas, de fascista e antiamericano. Claro, estávamos nos idos de 1954, mas será que de lá pra cá a coisa melhorou?
Depois de uma série de insucessos, tanto de crítica social quanto de público, entre os anos de 2006 e 2007 a Marvel acertou o passo e publicou uma saga que se tornou a menina dos olhos da crítica americana: Civil War, publicada aqui como Guerra Civil, colocou em lados opostos os maiores heróis da Casa das Ideias. O mote por trás da guerra? A adesão forçada dos mascarados a um controle governamental sobre humanos com superpoderes. Com o governo em crise por conta da economia em frangalhos e pelas guerras onerosas e infindáveis levadas a cabo do outro lado do mundo, além da eterna discussão sobre liberdade civil e de opinião, o povo americano de repente se viu dolorosamente representado pelos heróis que acompanhavam apenas através de traços e balões. Curiosamente, o maior símbolo quadrinhístico americano, o bandeiroso Capitão América, optou pelo lado da liberdade de [não] identificação e pagou um preço alto [que os próprios americanos enxergaram como uma representação amarga do crescente desemprego, crise financeira e derrocada do american way of life]. Sinal dos novos tempos?
Há muitos outros exemplos de crítica social [ou da retomada da] nas HQs, como a eterna luta dos X-Men por aceitação em um mundo que, por não conhecer / aceitar o que não entende / lhe é diferente, teme e odeia mutantes, mas se fosse colocá-las aqui, esse post viraria um livro. Então, permita-me voltar ao ponto que queria discutir.
Se você não esteve em Marte ou em alguma outra rocha fora da Terra nos últimos anos, já deve estar mais do que por dentro das discussões sobre direitos civis e políticas afirmativas da comunidade LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros]. Progresso em alguns países, retrocesso em outros, casamento aqui, pena de morte ali, as relações homoafetivas se tornaram ponto forte de discussão em várias esferas. E nos quadrinhos não poderia ser diferente.
Super-heróis gays não são novidade, mas nos últimos anos houve um esforço maior visando a permanência de supers com orientações diversas nas linhas periódicas de publicação, especialmente nas grandes casas DC e Marvel.
E, pasmem, o primeiro deles a sair do armário, lá nos idos de 1992, vai finalmente casar!
Isso. Você leu certo. C-A-S-A-R!
A Marvel está preparando para este mês, nas páginas da revista Astonishing X-Men #51, o primeiro casamento gay da história das HQs. Com toda a pompa e circunstância que a ocasião exige, o mutante Jean-Paul Beaubier, conhecido no Brasil como Estrela Polar [e que já passou pelas equipes Tropa Alfa e X-Men] vai finalmente trocar alianças com seu noivo, Kyle Jinadu.
Como disse antes, existem vários relacionamentos homoeróticos nas HQs, e a despeito da eterna dúvida que é Batman e Robin [o quê, não posso seguir com essa suspeita?!], estão aí para não me deixar mentir o Hulking e o Wiccan, dos Jovens Vingadores [Young Avengers], Karolina e Nico, d’Os Fugitivos [Runaways], Apollo e Meia-Noite, do Universo Milestone, da DC, além da nova Bat-Woman, de uma versão ultimate do Colossus e do novo integrante dos Novos Titãs, Bunker, um jovem latino pintosérrimo que, segundo os editores, “veio mostrar o gay como ele é (!)”, mas é a primeira vez que há a institucionalização de uma união homoafetiva.
Quanto ao enlace do Estrela Polar e Kyle…
“Quando o casamento gay se tornou legal no Estado de Nova York, isso obviamente nos trouxe questionamentos, já que a maioria dos nossos heróis vive nesta cidade. Estrela Polar foi o primeiro personagem abertamente gay dos quadrinhos, além de manter um relacionamento duradouro com seu parceiro Kyle; então, a grande questão era: como é que esta mudança afetará seu relacionamento?”, disse Axel Alonso, editor-chefe da Marvel Comics, e complementou: “Nossos quadrinhos são sempre melhores quando respondem e refletem a evolução do mundo real. Fizemos isso por décadas, e este casamento é apenas a expressão mais recente disso”.
Um passo muito importante, além de ousado e corajoso, da Casa das Ideias e um belo exemplo a ser seguido. Aliás, por falar em continuidade de exemplo [e aproveitando a onda midiática que o assunto gerou, com direito a boicote às HQs encabeçado pelas matronas americanas do One Million Moms] a DC Comics anunciou que um de seus mais antigos e sólidos heróis vai se revelar gay, marcando uma nova etapa da megassérie os Novos 52. Especulações não faltaram desde o anúncio até a revelação, mas como apontou o consenso geral, a editora divulgou que o mais novo [ou seria velho] super-herói gay da casa é o Lanterna Verde Alan Scott. Tido como o primeiro Lanterna, Scott é oriundo da chamada Era de Ouro e, na nova cronologia pós-52, é um dos heróis da Terra 2. Hal Jordan, por hora, escapou [a menos que outro casamento, este em tons de esmeralda, esteja a caminho, desta vez com as bênçãos de Batman e Super-Homem].
Um dado interessante? Muito antes de toda essa polêmica sobre casamentos e outing de antigos heróis acontecer, surgiram boatos [e uma página de HQ pra lá de suspeita] de que uma personagem da Turma da Mônica revelaria sua “predisposição à homossexualidade”. À época, e diante do reboliço que se seguiu ao boato, o próprio Maurício de Souza veio a público e admitiu que não era o momento para tal história ser contada e que ainda precisaríamos dar uns [muito] bons passos para que uma personagem com orientação sexual lésbico-gay fosse plenamente aceita na Turma. Uma pena, já que nestas coisas de vida-imita-a-arte uma personagem que falasse diretamente aos adolescentes, como é o caso da Turma da Mônica Jovem, seria uma ferramenta muitíssimo importante para diminuir o preconceito que ainda existe/persiste, seja contra as HQs ou contra os homossexuais.