Livro resgata estilo Espada & Magia
por Rober Pinheiro em novembro 21, 2010Um Comentário Publicado em Livros
Já falei uma vez por aqui que o mercado de fantasia nacional atualmente vê seus tentáculos se multiplicando e os autores procurando novos desafios e histórias originais para contar. Vimos surgir uma leva de subgêneros — alguns, inéditos por essas bandas — que trouxeram a reboque ótimas obras, e outros que estão começando a engatinhar agora, mas já que já apresentam boas promessas futuras.
E no meio de tudo isso, será que sobrou espaço para uma revisitação/reinvenção, daquelas que fazem a gente voltar à velha infância e pensar em como éramos felizes e não sabíamos? Para alguns autores, esse espaço está aí e lugar tem até de sobra.
Projeto que, salvo engano, é inédito dentro do cenário de Fantasia/Ficção Científica/Terror atual, o livro “Sagas, Volume 1 – Espada e Magia” é o primeiro de uma série de fantasia épico-medieval que a novíssima Editora Argonautas pretende lançar no mercado. A ideia do livro — e do projeto em si — é resgatar a aura de magia e aventura que desfilavam pelas velhas séries pulp americanas, aqueles famosos livros de bolso que fizeram sucesso nos idos das décadas de 1960 e 1970.
Criada pelos escritores Duda Falcão e Cesar Alcázar, a editora nasceu para e pelo projeto, e já tem pela frente o desafio mais do que louvável de [re?]introduzir o gênero Sword & Sorcery no Brasil. Segundo Cesar, o gênero conhecido como Espada e Magia se configura como uma das partes mais importantes da fantasia tradicional, mas que é praticamente ignorada no Brasil. “Poucas publicações desse estilo chegaram às prateleiras das nossas livrarias, embora sua popularidade no exterior seja imensa. Apenas alguns livros com o personagem Conan, de Robert E. Howard, e um livro de Michael Moorcock ganharam versões nacionais”. Ainda segundo ele, as histórias em quadrinhos, notadamente as aventuras hiborianas do cimério Conan, é que acabaram se tornando a maior fonte disseminadora destas histórias por aqui.
Como aproximação, já que de mercado nacional estamos falando, vale citar os trabalhos no estilo “borduna & feitiçaria” de Roberto de Sousa Causo, alusiva ao Sword & Sorcery, mas que traz como diferencial a fusão de folclore indígena e geografia nacional aos temas e leitmotifs da fantasia heroica dos países anglo-americanos, entre elas as histórias do livro “A Sombra dos Homens” (2004). Causo, aliás, também faz parte do Sagas; é dele o texto que abre a obra.
De volta ao projeto, Cesar explicou que a inspiração veio de uma série de antologias editada por Lin Carter nos anos 70, chamada “Flashing Swords”. Ideia na cabeça, ele acabou estendendo o convite a outro escritor, o gaúcho Duda Falcão, com quem já havia trabalhado nas antologias “Invasão” (2009) e “No Mundo dos Cavaleiros e Dragões” (2010), que o ajudou a desenvolver o projeto. “Era a nossa oportunidade de fazer algo diferente em meio a tantas releituras de Tolkien que inundavam o mercado. Assim, nasceu a série Sagas, que acabou tomando uma dimensão que não imaginávamos a princípio, dando origem a Argonautas Editora”.
Fora os já citados Robert E. Howard e Michael Moorcock, outros autores tiveram sua cora de influência na criação do projeto, nomes como Fritz Leiber e Karl Edward Wagner. As HQs também fizeram a sua parte, emprestando uma aura toda particular através das histórias do “Slaine”, “Thorgal”, do próprio “Conan” e “d’O mercenário”, além do traço marcante de desenhistas como Frank Frazetta, Ken Kelly e Chris Achilleos, nitidamente visíveis na capa — criada pelo desenhista norte-americano Nathan Milliner — e no projeto gráfico.
O livro, uma pequena preciosidade de 144 páginas, traz quatro noveletas, começando com “As Lágrimas do Anjo da Morte”, de Cesar Alcázar. Ambientada na Irlanda do início do século XI e tendo como pano de fundo eventos históricos como a Batalha de Clontarf (1014), o conto de fantasia heroica traz como protagonista o guerreiro mercenário Anrath, o Cão Negro. Ferido após uma batalha em que tenta conter uma incursão viking, ele é salvo e cooptado por uma banshee, um espírito anunciador da morte, que o obriga a encontrar um conhecido artefato da mitologia celta.
Segundo o autor, “Lágrimas do Anjo da Morte” é uma aventura inspirada na história e no folclore da Irlanda. Mais do que isso, ela foca os conflitos de um homem preso a uma vida de violência, da qual não consegue escapar. O protagonista, Anrath, tem um pouco dos samurais de Akira Kurosawa: solitário e melancólico, ele nem sempre está do lado dos vencedores. Um herói mais humano do que o habitual na Fantasia”.
Georgette Silen, fã confessa das histórias de Conan, traz para o livro a noveleta “A Cidadela de Elan”, na qual nos apresenta a Kira, a princesa de Hisipan, uma guerreira criada para lutar e não depender de ninguém. Às portas da cidadela do título, um lugar tomado por ladrões e governado por um homem implacável e irônico, Kira se vê em território hostil e às voltas com o iminente conflito com Baltazar, o líder da cidade. Nos calabouços da fortaleza, pedras sagradas devem passar de mãos para cumprir antigas promessas, mas antes a escória de ladrões precisa ser combatida. Além das ótimas cenas de luta e perseguição e dos castigos terríveis e inesperados, a história é permeada por um senso trágico muito pungente, além de uma dolorosa reviravolta no seu final.
“O projeto Sagas me trouxe de volta a antiga sensação de participar de um mundo o qual eu poderia acessar sempre que abrisse as páginas de uma revista. E foi essa sensação que quis transmitir ao escrever “A Cidadela de Elan”, cuja personagem principal, a princesa guerreira Kira, evocava em mim as lembranças saborosas das aventuras de Red Sonja e Valéria, a guerreira pirata”, disse ela.
“Sem Lembranças daquele Inverno”, de Duda Falcão, apresenta mais um pouco do universo criado pelo autor, as Terras de Lhu. Na história, o servo de um mago percorre as tavernas do distrito vermelho da cidade em busca de um mestre espadachim capaz de recuperar a gema de Gailfenir, uma joia mística, que está em posse de uma poderosa feiticeira. Numa noveleta bastante movimentada, somos apresentados ao cínico mercenário Atreil, que irá enfrentar pelo caminho muitas criaturas monstruosas invocadas pela feiticeira, até o encontro final entre eles que promete uma reviravolta inesperada.
Duda explicou que sua história é “um conto de aventura. O personagem principal, Atreil, é contratado para recuperar um objeto roubado. A trama se passa no universo das Terras de Lhu, [cuja maioria das histórias está] disponível para leitura em blog. Diferente da série original postada no http://hylananasterrasdelhu.blogspot.com, que buscava um público mais juvenil, esse conto é sombrio e voltado para o público adulto. Espada, sangue, ação e feitiçaria são os ingredientes dessa narrativa de caráter épico”.
“A dama da Casa de Wassir”, de autoria desde que vos escreve, traz pela primeira vez uma história totalmente focada nos Midh’raÿ, os povos que habitam as vastidões das Terras Ermas, a oeste de Thargor. A noveleta conta as aventuras de Atha’ny, príncipe guerreiro dos shoar’ym que se vê obrigado a embarcar numa jornada que mudará o destino de sua tribo e o seu próprio. Na trama, duas sociedades guerreiras se encontram para uma aliança militar selada por um casamento, mas o fato de ter que se casar com alguém que ele nunca viu é a menor das preocupações de Atha’ny, que terá de enfrentar seguidos testes de honra e coragem contra homens e mulheres armados de lâminas afiadas, entre eles a sua própria noiva. Vencidos os primeiros embates, ele terá de se confrontar com o maior desafio de sua vida, o temível feiticeiro Saavish.
Segundo Roberto de Souza Causo, prefaciador do Sagas, o conto “investe substancialmente na caracterização cultural do universo de Thargor. Com períodos longos e elegantes, são pintadas paisagens e relações culturais, [...] onde as traições e surpresas são muitas, conforme a leitura se acelera rumo ao desenlace. O leitor que busca emoções fortes não ficará decepcionado com essa noveleta”.
O livro “Sagas, Volume 1 – Espada & Magia” será lançado sábado, dia 20 de novembro, às 15:00 horas, durante o evento Jedicon, em São Paulo.
Abaixo, segue um pequeno aperitivo de cada um dos quatro contos presentes na obra:
[Trecho] “A Cidadela de Elan”, de Georgette Silen
“O trotar dos cascos dos cavalos parecia infinito, arrancando sons das pedras mudas do chão. A poeira impedia a visão clara, ardia nos olhos, causava coceira na garganta ressecada, desejosa de um bom vinho. O suor não dava trégua, escorrendo dos poros como as cascatas que brotam das entranhas dos vales escarpados ao norte, em Hisipan, bem longe dali. A saudade das águas frescas e borbulhantes correu por suas veias, triplicando a sensação térmica, tornando sufocante e ainda mais abrasivo o calor das terras de Elan, percorrendo suas estradas avermelhadas pelo pó, tendo apenas os desertos como companhia.
Os olhos verdes do viajante solitário perscrutaram o poente avermelhado, que morria lentamente, cedendo lugar ao arroxeado da noite. Calcou as botas nos flancos do cavalo, apertando seu passo. Era melhor chegar a Cidadela de Elan antes do breu assumir seu reinado, não seria prudente ficar a mercê naquelas terras afamadas por suas armadilhas e pilhagens.
Os ombros doloridos procuravam uma forma inexistente de conforto, e os músculos das coxas gemiam pelo esforço de tantos dias de viagem. O cantil estava quase vazio, mas calculou com experiência que seu objetivo estava próximo: as muralhas negras da Cidadela de Elan. Em meio à densa esteira de poeira que se levantava, conseguia vislumbrar os arbustos espinhentos, como garras espectrais, que se projetavam pela estrada, prontas a atacar o descuidado viajante, entes fugidos do mundo sobrenatural vagueando pela terra atrás de possíveis presas. Quando fez a curva sinuosa contra o rochedo que se agigantava, enxergou a garganta de um estreito vale rochoso que crescia em rota de subida íngreme, e que culminaria na Cidadela, uma proteção natural e obrigatória a seus ocupantes.
Ao adentrar o veio entre as pedras, o silêncio tomou uma forma palpável, gritante. A lua que emergia insinuava-se entre as nuvens secas, piscando seu brilho contra o viajante envolto no longo manto escuro como a noite que o cercava, coberto por um capuz de igual negritude, e que, por instinto quase animal, diminuiu o passo. Olhando, buscando, vigiando.
O arrepio na base da nuca foi a sineta de aviso. A falta de vento tornava mais pesada a atmosfera de expectativa que tomou conta de seu corpo, fluindo como uma corrente que atingia o cavalo, espelhando sua tensão. A mão enluvada em cota de malha sacou a espada, ao mesmo tempo em que três formas escuras se fizeram visíveis, os corpos destacando-se das sombras como desencaixadas de outro mundo. Olhos enfurecidos cercaram o cavalo que relinchava, mas que se mantinha firme no comando de seu ocupante. Não houve conversas, perguntas ou discussões. Apenas o fio de uma espada possuía o vocabulário que conheciam bem. O primeiro avançou, escolhido para distrair, enquanto os outros dois acercavam-se aos flancos do cavalo negro, um imponente corcel que resplandecia seu pelo em reflexos azulados ao luar.
O cavaleiro esperou, rígido. Quando se moveu, rápido mesmo para olhos treinados, a mão de seu adversário imediato descreveu uma curva elíptica no ar, separada do membro num corte preciso. Ele caiu, berrando, tentando conter o sangramento que aplacava a sede do solo árido. Com urros ferozes, os outros avançaram. O cavalo elevou as patas traseiras, desferindo um coice potente que atingiu um dos homens diretamente no peito, arremessando-o de encontro ao arbusto esquálido. O cavaleiro saltou da montaria, desviou-se duas vezes de golpes desferidos contra sua cabeça e peito, e trespassou o último com habilidade, sem chance de defesa, fazendo verter mais sangue da carótida rompida. E estava terminado. Os corpos ficaram abandonados como estrume na estrada.
O olhar esverdeado mirou o maneta que se encolhia e arrastava rente as pedras pontiagudas do solo, encurralando-o com a espada. A luz da lua, a lâmina refulgia como uma joia em prata.
― Leve-me a Baltazar. ― a voz sonora e levemente rouca não dava margens a discussões”.
[Trecho] “A dama da Casa de Wassir”, de Rober Pinheiro
[...] As grandes muralhas de Wassir En Nash davam a Atha’ny uma estranha sensação de desconforto. Acostumado aos amplos espaços abertos das praias brancas de Heya, a aldeia central dos shoar’ym, onde nascera, e ao horizonte do mar sem fim que lhe tomava a face sul, para ele, estar entre muros altos era mais um desafio que aquela jornada lhe impunha, como se as paredes enegrecidas em torno de si o prendessem como uma gaiola. Para além delas, o horizonte longínquo delineava a majestosa barreira de montanhas e a extensa faixa de terras que levava à Thargor, o grande continente fronteiriço situado no ocidente do mundo.
Atha’ny já ouvira muitas histórias sobre os homens que habitavam as vastas terras onde o sol surgia primeiro, muitas delas trazidas pelos Wash’Yiár, os Clãs de Comércio que recentemente haviam travado conhecimento e negócio com eles. Outras, oriundas das poucas incursões que guerreiros Midh’raÿ haviam feito para além da fronteira. Certa feita, quando ainda jovem, ouvira de um guerreiro que aportara em sua aldeia, vindo do norte mundo, histórias sobre as Grandes Guerras e os muitos assaltos perpetrados por seu pequeno grupo de bravos às cidades dos thargorianos, ainda pouco dados às artes da guerra que seu povo tão bem dominava desde o nascimento. À época, Atha’ny ouviu admirado o estranho contar sobre a lenda que surgiu entre eles acerca da assombrosa capacidade mística dos Midh’raÿ de se misturarem às sombras, dom que, segundo tal história, fora obtido através de um pacto com os Amu’darash, chamados por eles de Senhores das Sombras. Depois de anos de guerras, o continente gozava agora de uma paz duradoura, graças em parte a um grupo de lordes mágicos que, segundo soubera, haviam se tornado detentores de um poder incomensurável. Um deles, inclusive, que presenciaria a Noite da Aliança, logo mais.
— Meu senhor — uma escrava branca, de olhar passivo que refletia a cor das ondas do mar distante, assomou-se à porta. — Os Senhoriais o aguardam no grande salão.
Era de uma beleza singular, a escrava. A pele alva e o sotaque levemente estranhado indicavam que provavelmente havia sido trazida das aldeias mais ao norte. Vestida à maneira dos habitantes de Wassir — com uma túnica curta que lhe cobria pouco mais da metade do corpo, deixando as longas pernas e o colo convidativamente expostos — ela se mostrava irresistivelmente encantadora. Aquele não era o mais apropriado dos momentos, mas Atha’ny não conseguiu reprimir o desejo que lhe surgiu sem aviso ante o chamado que emanava do corpo da jovem escrava. Graças àquela maldita viagem, a Noite das Descobertas lhe havia sido negada e agora ele teria de esperar sabe-se lá quanto tempo até poder provar pela primeira vez da carne tenra de uma fêmea. Ele aproximou-se devagar, acariciando seu rosto com a ponta dos dedos, enquanto ela involuntariamente recuava, assustada.
— M-meu… senhor…?
Atha’ny sentiu o desejo se intensificar ante a negativa da escrava, mas buscou se controlar. Não sabia se ela já tinha dono e não seria um bom presságio iniciar as relações com seus futuros aliados lhe roubando os escravos. Contrafeito, ele afastou-se, recolheu a espada de sobre o móvel, apertou no pulso a emblema de Dash’wa — cuja insígnia de Shoar reluzia a ouro e as cinco cabeças reptílicas traziam pequenas preciosidades em lugar dos olhos —, artefato especialmente preparado para aquela noite e que, ao final, seria entregue a sua noiva, como forma de selar a união entre os Clãs, e seguiu a escrava para fora do quarto. Aquele era já o segundo dia desde a chegada a Wassir En Nash. Depois de acolhidos pelos senhores do lugar e devidamente acomodados, ele passara a cumprir os rituais protocolares que a situação exigia: se apresentara ante o Senhor de Guerra e governante da Cidade-Império e lhe oferecera os seis presentes sagrados; estivera na presença do Pai do Tempo e lhe mostrara as seis marcas do eleito, feitas por cada uma de suas Seis Espadas, e visitara o Templo de Dash’wa, a Única — uma construção imponente que ocupava a praça principal da cidade —, depositando sobre o altar uma gota de seu sangue, cumprindo assim as honrarias que deveriam ser prestadas por um guerreiro Midh’ray e futuro consorte de uma filha de Wassir.
A escrava o conduziu por um largo corredor, desordenadamente ornamentado por uma sorte de armarias e apetrechos de guerra pendurados ou simplesmente jogados junto às paredes, deixando-o às portas de um amplo salão localizado na parte mais alta da construção. Sobre o madeiramento enegrecido, desenhos rústicos pareciam querer contar, embora sem muito sucesso, a história do povo que fundara aquela cidade. Antes que Atha’ny pudesse indagar-lhe o que viria a seguir, ela desapareceu. [...]
[Trecho] “Lágrimas do Anjo da Morte”, de Cesar Alcázar
Um vento frio e melancólico soprava sobre a desolação do campo de batalha. Não havia um único movimento entre as numerosas pilhas de cadáveres. Não havia um único sinal de vida. Homens reduzidos a animais pelas ambições de sua raça. Vidas perdidas de forma brutal na areia da praia, por motivos há muito esquecidos pelo tempo. O triunfante silêncio da morte que paira acima desse cenário mórbido é cortado repentinamente por um lamento. Dentre a multidão de corpos inertes surge o suspiro de um sobrevivente.
O mercenário se contorce de dor. Com cuidado, ele examina o ferimento sob a pesada malha de metal. Há um corte profundo em seu ombro direito, que quase o impossibilita de movimentar o braço. Ele tenta usar a própria espada como apoio para erguer-se. Porém, a perda de sangue o deixara fraco demais para desempenhar essa singela tarefa. Sua mente é atingida por grande pesar ao observar os companheiros caídos em combate, formando um extenso tapete vermelho de sangue. Tantas vidas terminadas violentamente. Por outro lado, a missão fora cumprida com êxito e as naus incendiadas das forças invasoras jaziam à beira da praia. Do fogo alto emanava uma luz amarelada fantasmagórica no entardecer.
Muitas batalhas foram travadas pelo guerreiro mercenário em outras épocas. Seu olhar triste e o rosto sombrio de feições ásperas, como uma imagem esculpida a machado, indicavam grande sofrimento interior debaixo dos longos cabelos negros. As cicatrizes eram os relatos de lutas ferozes do passado. Sua vida fora traçada através de constantes batalhas em troca de pagamento; e ele não se envergonhava disso.
Agora suas forças pareciam se exaurir. Sentia o frio da noite que chegava como nunca sentira antes. Ao longe, avistou uma figura sinistra, vestindo uma longa capa negra e capuz, andando em sua direção. O contorno da capa esvoaçante destacava-se contra a brancura da areia. Apesar da aparência assustadora, os movimentos daquela peculiar aparição eram belos e delicados. Ela avançava com passos lentos, caminhando entre os mortos como se deslizasse por um jardim de flores sepulcrais. A natureza macabra da paisagem não dava a impressão de lhe causar qualquer incômodo.
Quando a figura ficou mais próxima, o guerreiro pôde notar que se tratava de uma alta e bela mulher; o corpo estranhamente nu sob a capa negra, e o rosto oculto pelo capuz quase por inteiro. Pensamentos confusos passaram pela cabeça do homem. Imaginou estar delirando de febre devido aos ferimentos ou então sonhando os mais loucos desatinos que a guerra pode provocar. Mais uma vez tentou levantar sem sucesso. Tinha sangue por todo o corpo. O próprio sangue e o dos inimigos encharcavam a túnica e a malha de metal.
[Trecho] “Sem Lembranças daquele Inverno”, de Duda Falcão
1. O servo de Gimedjin
O anão desajeitado caminhava com evidente rapidez pelas ruas do porto de Dartmor. Sua falta de jeito ao andar devia-se a uma perna ser maior do que a outra. Nevava durante uma rara noite de tranquilidade na cidade portuária. As roupas de lã de ovelha e couro de boi protegiam aquele sujeito desengonçado, de corpo raquítico e aspecto doentio.
A figura canhestra entrou em uma das tabernas menos movimentadas. Agradeceu aos deuses por se abrigar daquele frio. Olhou ao redor. Viu alguns piratas bebendo vinho. Cantarolavam, falavam aos brados, discutiam, riam de piadas. Prostitutas rondavam os corsários em busca das riquezas que haviam saqueado em suas últimas aventuras. Alguns deles competiam para ver quem possuía a melhor mira. Arremessavam suas adagas em um tabuleiro fixado na parede. Acertar o centro do tabuleiro significava ganhar uma bebida paga pelos demais competidores. Outros jogavam sobre as mesas dados de marfim: as combinações mais altas sempre eram as vencedoras.
O servo de Gimedjin, um obscuro feiticeiro da cidade portuária, procurava por alguém especial. Tratava-se de um mercenário renomado pelos seus feitos naquela região. Uma noite antes ouviram-se rumores de que Atreil visitava o porto em busca das cobiçadas meretrizes que viviam na cidade. Gimedjin ao saber do boato enviara o anão para encontrá-lo. Sua busca iniciara ainda na madrugada anterior. Já estava ficando preocupado. Se não encontrasse logo o objeto de sua empreitada, desconfiava que o chicote do senhor não o pouparia de mais um insucesso.
Em um canto escuro, uma mulher com os seios à mostra permitia que um homem a tocasse livremente. Essa era uma cena comum nos estabelecimentos noturnos de Dartmor. Os proprietários, às vezes, permitiam sexo sem censura ou pudor, quando os clientes colocavam mais moedas sobre as mesas.
No centro da taberna o bardo contratado cantarolava uma melodia alegre, enquanto dedilhava, em um instrumento de madeira com caixa de ressonância, as quatro cordas feitas de tripa de carneiro.