Como Treinar o seu Dragão, a animação
por Rober Pinheiro em abril 9, 20102 Comentários Publicado em Animação, Cinema
É fato que a adolescência é um dos estágios de transição mais complicados da vida. Mal saído das fraldas da mãe e o jovem já tem que enfrentar uma série de desafios: o mundo cruel da escola, o convívio, nem sempre harmonioso, com os colegas, a conquista do primeiro emprego e da primeira namoradinha, as cobranças dos pais, suas próprias cobranças. E, se isso já é difícil na nossa época, com toda a comodidade e livre escolha de que dispomos, imagine então passar por esse ritual de aceitação durante a era viking, num vilarejo bárbaro encravado no alto de um penhasco no frio norte da Europa? Tire o pai com a gravata e coloque no lugar um chefe tribal, troque a escola por uma arena de treinamento e substitua a busca do emprego pela cabeça de um dragão e você vai ter uma ideia do que o jovem Soluço terá pela frente.
Na nova animação da DreamWorks, Como Treinar o Seu Dragão (How To Train Your Dragon, EUA , 2010), dos diretores Dean DeBlois e Chris Sanders, vemos os típicos problemas da adolescência ganhar ares de tragédia anunciada. Tragédia, sim, mas conduzida com um toque de leveza poucas vezes visto no cinema de animação.
Nesta adaptação das histórias de Cressida Cowell, Soluço é um típico rapazola franzino e desengonçado, daqueles que nos passa totalmente despercebido e a quem raramente dirigimos o olhar uma segunda vez. Até aqui, nada demais, afinal, encontramos tipos assim às pencas por aí. O problema é que ser um jovem fracote e inseguro numa aldeia onde todos os homens são fortes, destemidos e exímios matadores de dragão é, pra dizer o mínimo, uma desgraça. E, pra piorar tudo, ele é filho do grande Estóico, o chefe da aldeia de Berk e o maior matador de dragões de que se tem notícia.
Buscando mostrar seu valor, constantemente negligenciado — não sem certa razão — pelo pai, Soluço resolve testar uma de suas engenhocas numa noite em que a vila está sob ataque e acaba acertando um dos dragões. Obviamente, ninguém acredita e, para atestar a veracidade da história, ele sai em busca da presa abatida, encontrando a mais temida das feras aladas que assolam a aldeia presa em sua armadilha: um Fúria da Noite. Soluço tem a chance de matá-lo e mostrar de vez que a verdade é bem diferente daquela que dia sim e outro também todos fazem questão de lembrar-lhe. Mas, no final, o que acaba fazendo é libertar o dragão e cuidar de seus ferimentos, dando início a uma amizade que vai sacudir os alicerces da velha Berk.
Soluço é um jovem comum que, dada sua condição, se vê na obrigação de provar sua bravura aos demais e, principalmente, provar-se capaz. Porém, esse teste de valor não é o mote principal que move seus passos. E o grande mérito do filme está exatamente em tratar toda essa situação de forma natural, sem os clichês típicos do gênero. Soluço sabe-se um fracassado, ri de si mesmo e não tenta mudar esta condição apenas pela ânsia desesperada de provar-se capaz. Antes, busca tão-somente encontrar seu lugar entre os de sua aldeia, o que, para ele, seria seguir o caminho dos grandes guerreiros, em especial, os do pai. Este, por outro lado, conhecedor das limitações do filho, o encoraja a não seguir seus passos e até lhe recomenda outros ofícios, mais de acordo com suas aptidões.
Mas, Soluço também carrega em si uma teimosia resignada, agregadora de certa mudança de caráter que o torna especial, diferente. E é exatamente essa resignação que o transforma numa personagem forte. Ele quer matar um dragão para tornar-se, finalmente, digno de nota. Porém, essa convicção vai por terra ao primeiro sinal de possível mudança. E isso se dá na figura do dragão que, ate então, era sua ideia de conquista.
Aqui, no contato entre esses dois mundos, outra questão importante toma corpo: ambas as raças, homens e dragões, estão apenas lutando pela sobrevivência, pelo mantenimento do modus vivendi que conhecem desde tempos imemoriais e, ao criar um vínculo com um dragão, Soluço vai contra tudo o que eles acreditavam, na clássica revisitação dos valores tidos como imutáveis pelos mais velhos.
O filme tem uma pegada gostosa, leve, e a história segue sem grandes sobressaltos. Tudo está onde deveria estar. As piadas levemente ácidas e as tiradas pontuais rendem algumas das melhores partes do filme, como quando um dos amigos de Soluço passa a enumerar as forças e fraquezas das inúmeras raças de dragão, numa clara alusão que vai fazer a alegria de qualquer jogador de RPG ou quando Soluço enumera as qualidades desejadas pelo pai para a concepção perfeita de um filho e o que de fato resultou disso. As personagens também estão bem dosadas, nenhuma se sobressaindo ou se tornando descartável. Destaque para o treinador Bocão e para o interesse amoroso de Soluço, a espevitada Astrid.
Os dragões são um espetáculo à parte. Cada raça possui constituições e características muito particulares, o que transforma o filme num mosaico de criaturas que saltam aos olhos. O Fúria da Noite, em especial, possui uma perfeição de gestos e fluidez (que em muito lembra o pequeno Stitch, personagem do filme homônimo também dirigido pela dupla DeBlois /Sanders) na tela que, não fosse às proporções assumidamente cartunescas, beiraria a senda do real.
O filme ainda traz algumas das sequências de voos mais incríveis dos últimos tempos em matéria de desenho animado. Rasantes sobre o mar e voos em desfiladeiros labirínticos, mergulhos em queda livre, no meio e por cima das nuvens são a cereja do bolo, assim como a luta final, em que Soluço e Banguela — ah, ainda não tinha falado sobre o curioso nome do dragão? —tem que enfrentar o, literalmente, maior desafio de suas vidas. Grande parte deste show visual deve-se a Roger Deakins, diretor de fotografia já indicado a oito Oscars e que bem merecia um por este filme.
Além de todas essas qualidades, Como Treinar o Seu Dragão tem um dos finais mais bacanas que já vi, uma mostra sincera de que um desenho não necessariamente precisa ser apenas entretenimento, mas que pode passar uma ótima lição sobre valores e sobre o real significado da amizade.