“A Era da Inocência” de Dennys Arcand

“A era da inocência” (“L’Âge des ténèbres“, 2007) é o título brasileiro do novo filme de Dennys Arcand. Diretor de “As invasões bárbaras” (2003), “Amor e restos humanos” (1993), “Jesus de Montreal” (1989) e “O declínio do Império Americano” (1986), Arcand tem assinatura própria e um gosto pelo sarcasmo que a poucos agrada. Seus filmes costumam gerar mais comentários elogiosos que o número de pessoas que os entendenderam e até mesmo do que viram. Uma reação natural de um público ao qual a piada é quase sempre servida com guarnição de legendas e que acredita que cinema é um gênero de entretenimento.

Claro que os ruminantes os há em demasiado. Ocupamo-nos hoje em intensos debates sobre se esta população não nos abrirá o céu de ozônio sobre as cabeças deixando-nos inteiramente descobertos, uns sem-teto planetários.

É assim que colocamos mais uma folha de alface entre os dentes. Felizes os tempos em que fazíamos duas orações por dia e mandávamos nossa consciência junto com os lençóis para a lavanderia.

A lavanderia divina fechou. Não somos mais inocentes. Os poucos que não lavamos nas self-service de fichas encontramos chineses atrás do balcão que, apesar de não terem pureza têm paz celestial.

A inocência de “L’Âge des ténèbres” (ou, em tradução direta “A idade das trevas”) é pura ignorância. A ignorância que nos açoda e espreita impaciente. É tradução equivocada sabe lá por que motivação mas que acaba caindo como luva em um filme que trata da inviabilidade de nossos dias. É também a idade das trevas de nosso protagonista.

Marc Labrèche é “Jean-Marc Leblanc”, o cavaleiro branco desta nossa idade medíocre.

Tem 41 anos e percebe mais vazio a cada dia tudo a sua volta. Todos estão absortos em distantes universos tão hedonistas quanto patéticos.

Sua mulher vive intensamente uma espiral uorcarrólica de ascensão profissional. Suas filhas ouvem apenas o que o fone entrega aos ouvidos e recusam de imediato qualquer elaboração de discurso.

Seu trabalho é tão vazio que apesar das inúmeras cenas em que é flagrado no exercício profissional, sabemos mais daquilo que não faz do que sobre o que realmente faz.

Nosso herói já foi aluno brilhante, líder estudantil e hoje vive no espaço, a fronteira final onde nenhum homem jamais esteve e onde não há nada mesmo. Nem ele. Leblanc não se encontra em lugar algum e por isso fantasia todo tempo uma variedade de grandezas. A própria abertura é um delírio de grandeza.

Um delírio operístico-sexual onde o protagonista é fortuitamente mostrado em corte rápido confundido pela imagem de Rufus Wainwright. Leblanc não sonha pouco. Não sonha apenas com mulheres sexualmente insaciáveis. Sonha em ser irresistível à ninfa por conta de seus dotes literários ou mesmo por sua voz (ainda que homossexual). Sonha, como diz o poeta, porque sabe que não é nada e não pode querer ser nada. Sonha por que instalado em seu próprio universo não tem para onde ir.

E Arcand nos desfila uma sucessão de gags que mostram dentes cada vez mais amarelos. Vemos o vazio na sessão de motivação profissional, na especialista em feng-shui, no ridículo midiático, no cidadão que deve ao estado pelo estrago que causou ao poste que em um acidente lhe amputou as pernas, na comida semi-pronta de microondas, na comunidade temática de duelos de cavalaria, nos encontros às escuras promovidos por agências matrimoniais, no politicamente correto, na lucrativa, louca e injusta prática de separação matrimonial. Todos estão descontentes. As piadas apenas parecem insólitas. Uma melhor observação mostra como a estranheza vem, na verdade, da forma como são apresentadas, não de seu conteúdo. Um certo nonsense, no sentido literário da coisa. É uma estranheza desoladora mas o estranho mesmo é o real.

O filme foi mal recebido pela crítica brasileira. Arcand foi considerado pessimista, acusado de fazer a parte fácil, apenas identificar o vazio, o patético de nossos dias. Acredito que assim como seu filme anterior (“As invasões…”) foi super-valorizado, este foi subavaliado.

Coloco tudo isso na conta das tais ruminâncias em coro. É sobre isso mesmo que fala o filme de Arcand. E termina bem de acordo. Posso até fantasiar uma continuação onde Leblanc enfrenta novamente seu imenso vazio, desta vez em uma abordagem bucólica.

Título Original: L’ Âge des ténèbres
Gênero: Comédia
Duração: 104 min
Ano: 2007
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand