Estréia 20 de março nos cinemas nacionais a adaptação de Frank Miller para o cinema da cultuada série de quadrinhos “The Spirit“. Criado nos anos 40 por Will Eisner, Spirit é o herói de Central City, a cidade que o cria e inspira. O traz Gabriel Macht (de “Minha mãe quer que eu case” e “Numb3rs“) no papel título, Samuel L. Jackson como o vilão Octopus e um desfile de beldades como Scarlett Johansson, Eva Mendes, Jaime King, Sarah Paulson e Paz Vega.
“Eisner é o melhor. Ele ainda é o melhor de todos nós” são as palavras de Frank Miller que em sua famosa série “Sin City” faz clara homenagem à maestria de Eisner não apenas na utilização de preto e branco mas em toda estrutura dramática colocando em primeiro plano a cidade que se contrapõe aos tipos humanos e seus dramas. Mas Sin City não é Central City e Miller não é Eisner. São, de fato, paralelos que marcaram um encontro neste filme de 2008.
O “The Spirit” de Miller já foi até chamado de “Sin City 2″. As razões para tal não são poucas. Há muito, muito mesmo de similaridade estética entre ambos. Junto à proximidade temporal das duas produções esta talvez seja a maior qualidade e, ao mesmo tempo, defeito do delicioso filme de Miller. Delicioso na coleção de inspirados ângulos, do clima noir resultante do alto contraste no uso do branco/preto/cor, no desfile de femmes fatales tão belas quanto sensuais e no ar blasé de Gabriel Macht que encarna o herói com razoável competência.
As dificuldades do filme são entretanto, grandes e parecem derivar do tal entorno criativo que assombra seu criador. Miller sabia claramente o que buscava em seu primeiro “Sin City” mas a este “The Spirit” falta destino, consistência. Parece que confundimos a ironia deste com o sarcasmo daquele. A cidade do pecado é fria, dura e impiedosa. Seus personagens são malvados e sujos. O espírito de Eisner (pronto, cometi o trocadilho) é, no entanto, de uma graça quase inocente, de uma ironia fina mas sempre jovial e alegre. E esta pegada é extremamente perigosa. Nonsense é material de manipulação extremamente delicada. Facilmente desanda e fica sem sentido. E o que poderia ser uma de acidez despretensiosa passa do ponto e fica apenas bobo.
O Octopus de Jackson lembrou muito a decepção que tive com o Coringa de Nicholson. A impressão que fica é que faltou direção a Jackson. Ele é um monstro, sabemos, mas para recuperar o DNA de Héracles para “que todos na cidade me obedeçam” precisa de todo um clima sacana. Há várias tentativas de instaurá-lo, como a impagável explicação de sua ajudante sobre porque trabalha com um louco homicida, mas o chiste se funde com tanta tensão e fica por demais diluído. Como a medida do herói é definida pela dimensão do vilão esse é um dos percalços centrais do filme. Mas é Samuel L. Jackson na tela. E ele não gosta de levar ovos. Seu Octopus, apesar de não emocionar, tem vários bons momentos.
As mulheres… Ah as mulheres…. Elas são realmente pontos altos, baixos, curvilíneos e já valem o ingresso. O Spirit de Macht dialoga perfeitamente bem com elas assim como com o Octopus de Jackson, o que não acontece com o Comissário Dolan de Dan Lauria. As trocas de farpas entre o polícia vivo e o morto são vacilantes e não conseguem transmitir exatamente o que é a relação de ambos.
“The Spirit” tem sido implacavelmente arrasado por aí. Acredito gostaremos muito mais dele daqui há alguns anos quando o espírito (mais um!!) de Sin City já tiver seguido para outras bandas.
No fim fica a mesma impressão de qualquer HQ de Spirit que não tenha sido feita por Eisner. E quase não há maior homenagem ao gênio que esta. É como tocar piano “a la Thelonious Monk“. Você distingue claramente o discurso. Todas as pausas dramáticas estão lá. As notas tortas também. Só que não é o Monk. Você nem sabe bem o que falta, mas é claro que falta.
Sobre a série de quadrinhos
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Eisner usava o personagem central para explorar uma ampla variedade de histórias, de contos centrados em pessoas comuns até alucinantes viagens beirando a ficção científica. Nas palavras do próprio Eisner, “O que eu queria inicialmente era criar um personagem detetive que me desse espaço para contar histórias. Eu estava interessado no formato de histórias curtas e achei que ali estava enfim a oportunidade de trabalhar com histórias curtas em quadrinhos. Eu poderia fazer as histórias que quisesse porque teria uma audiência mais adulta. Da forma como eu o concebi, The Spirit era um aventureiro que podia me permitit colocá-lo em quase qualquer situação.”.
A caracterização do personagem como um herói fantasiado foi inicialmente uma idéia do editor “Busy Arnold” que, em vista da popularidade de Batman e Super-Homem convenceu o contrariado Eisner.
“Foi quando eu dei a The Spirit a máscara. Mas isso era o mais longe que eu estava disposto a ir. Qualquer tipo de fantasia poderia limitar a variedade de histórias que eu poderia criar. Seria um fator inibidor. Depois eu coloquei luvas nele. Estas foram as duas concessões que fiz.”. Eisner inspirou-se em seu próprio rosto na criação da face Spirit. “Mas hoje pareço mais o comissário Dolan. Fui amaldiçoado”, brinca.
O Spirit de Eisner tem três períodos. O inicial de 1940 até 1942 é interrompido quando o desenhista é convocado para servir no contexto da Segunda Guerra Mundial. Enquanto Eisner produzia cartazes, ilustrações e tiras para eduacação e entretenimento das tropas a série continuava com escritores e desenhistas fantsmas. Em 1945 Eisner retoma a série para radicalizar em ampla gama de formatos de discurso como histórias contadas em canções, nonsense e poesia.
Em 1952 o desenhista interrompe a produção de histórias do herói. Conta que o principal motivo foi a falta de tempo para se dedicar simultaneamente ao personagem e a sua empresa de quadrinhos educativos. “E era muito difícil achar alguém que me imitasse bem. Há personagens de quadrinhos que não podem ser desenhados por outros cartunistas, não é a mesma coisa. Acho que o meu é um deles”.
E foi com seu Spirit que Eisner revolucionou os quadrinhos em forma e conteúdo. Utilizava conceitos inéditos: ângulos estranhos, muita sombra, fusões e cortes. Era uma sinfonia em alto contraste onde o mestre criava texturas e profundidades usando apenas preto e branco.
A matéria prima com que Eisner trabalhava na série era o humano. O herói eventualmente só aparecia no fim da história para contribuir com uma blague sacana e genial expondo o patético de nossa condição. Spirit não tinha super poderes, como nos lembra seu criador: “É importante dizer que não fiz o Spirit para se transformar em super-herói. No Spirit, o que realmente contava era o espírito das pessoas na época e eu estava mais interessado em histórias curtas”.
Durante os anos 60 Eisner ainda produz algumas poucas histórias do herói, convencido pelo sucesso da contínua republicação em tiras de seus contos originais. Eisner considera porém, que 1952 é “o ano da morte de Spirit”. Em 1978 o mestre promove uma vez mais uma revolução nos quadrinhos popularizando o conceito da “Graphic Novel” ou, em português, romance gráfico, um formato derivado das tradicionais HQs. Por vezes o desenhista é citado como criador do termo “Graphic Novell” mas o certo é que seu trabalho “Um contrato com Deus” (A Contract With God), que exibe a expressão em sua edição brochura, expande os limites da arte sequencial, popularizando para sempre a expressão, ao mesmo tempo que define novos rumos para produções com foco em um público mais maduro que cresceu lendo quadrinhos e busca conteúdo gráfico e literário de alta qualidade.
Entrando no espírito
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Cinema
Esta não é a primeira adaptação cinematográfica do herói maior de Eisner. Há um piloto para TV de 1987 (“
The Spirit“) que, rejeitado pelo próprio Eisner, não deu origem à série.
Will Eisner: Profession – Cartoonist de 1999 é um documentário premiado sobre a obra de Eisner dirigido pela brasileira Marisa Furtado de Oliveira. Está disponível para compra em formato mas não há edição nacional. Para quem quer conferir há clipes no .
Outro documentário sobre Eisner é “
Will Eisner: The Spirit of an Artistic Pioneer” de 2007 produzido e dirigido por
Andrew D. Cooke, também sem distribuição no Brasil.
Teatro
Está em cartaz no Teatro do SESI São Paulo a excelente adaptação do universo de Eisner para o teatro “Avenida Dropsie“, com direção de Felipe Hirsch e cenografia de Daniela Thomas. É uma remontagem da premiada peça de 2005 quando Hirsch apresentou esta seguida de “Sketchbook”, uma espécie de investigação do universo do autor. Esta nova montagem tem temporada limitada em um contexto de mostra comemorativa.
Livro
Está nas livrarias “Wittgenstein e Will Eisner” da Lumme Editor que contrapõe o universo de Eisner com o pensamento do filósofo e traz como anexo um álbum do cartunista.
Arte
Para quem deseja ter um desenho original do mestre, há a Steve Krupp’s Gallery & Curio Shoppe que vende arte original não só de Eisner mas de Crumb entre outros.
O blog Planeta Mongo tem também uma coleção de papéis de parede do desenhista.
Quadrinhos
A Panini publica uma série de graphic novels com o personagem e o quinto volume está programado para este mês de março. Não são criações de Will Eisner mas seguem a programação da DC Comics, atual detentora dos direitos de publicação, com edição em formato americano e capa em couché. Também pela Panini há “Batman & Spirit” encontro entre dois grandes heróis hoje reunidos na casa DC.
A tem a venda diversos álbuns de Eisner, com destaque para “Narrativas Gráficas” e “Um Contrato com Deus & Outras Histórias de Cortiço”. Em “Narrativas Gráficas” o mestre discute princípios da narrativa com a combinação sofisticada de texto e imagem. Embora as histórias em quadrinhos sejam o seu alvo principal o livro revela e ensina métodos que podem ser aplicados no cinema, na TV e na internet. “Um Contrato com Deus & Outras Histórias de Cortiço” é a edição brasileira do seminal livro cultuado como pioneiro na forma graphic novel.
A Cia das Letras também publica diversos títulos de Eisner.
A Martins Fontes Paulista também publicou Eisner: “A princesa e o sapo“,”Avenida Dropsie – A vizinhança“, “A força da vida“, “O nome do jogo“, “Pequenos milagres“, “O sonhador“, “O último dia no Vietnã” e “A baleia branca”
Serviço
Título Original: The Spirit
Gênero: Aventura, comédia, fantasia e thriller
Duração: 108 min
Ano: 2008
Site Oficial:
Site Brasileiro: http://www.thespiritofilme.com.br/
Distribuição no Brasil: Lionsgate / Sony Pictures Brasil
Direção: Frank Miller
Roteiro: Frank Miller baseado na obra de Will Eisner